Domingo, 11 de Setembro de 2005

Desafio literário - "Triste e desgraçada vida!"


Há alguns dias lancei um desafio literário a um grupo de amigos da net. São pessoas de todas as idades, de todos os cantos do País mas que têm uma coisa em comum: todos são portadores de algum tipo de deficiência. A net ajuda muito na troca de ideias, informação e até a diminuir a solidão, principalmente das pessoas que vivem no interior.
Desse desafio literário, saíu vencedor, o texto do meu amigo Helder, que vos deixo aqui por considerá-lo muito bom, quer a nível de linguagem quer a nível de conteúdo.

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"Triste e desgraçada vida"

Lisboa, 13 de Maio. Acordei tarde, sem ânimo. Está calor e abafado, não corre uma brisa. Esta parte da cidade, por ser baixa, funciona como caldeirão ao lume. A janela aberta desperta-me para o bulício da cidade. Entre o ruído dos carros consigo distinguir o som das 1001 vozes de alfacinhas incógnitos que começaram o dia bem mais cedo que eu. Que vidas de formiga, de um lado para o outro, numa azáfama constante, como se fosse o último dia das suas vidas…
Como eu os invejo... Sim, como invejo a sua mobilidade, o seu dinamismo, e por outro lado, o seu sedentarismo assumido de formigas auto-mobilizadas. Construíram uma cidade à sua medida, onde os outros não têm lugar. Os outros, quais outros? Nós! Eu! Nada melhor para começar o dia que este tipo de interrogações. Dia? Já será meio-dia? Ainda não! Fixe.
Uma vez que estou acordado e já despertei o melhor será levantar-me.
MARIAAAAAAAAA.
A Maria é uma negrinha de meia-idade que trata do sector dos tetras, dos aleijadinhos profundos. Veio para Portugal à 5 anos, à procura de um emprego estável, mas o melhor que conseguiu foi um lugar no sector dos residentes inválidos, os tetraplégicos.
É um sector pequeno, antigamente éramos três, antes de o Daniel morrer de uma cirrose hepática. Agora só o Lúcio me faz companhia.
O que um tinha a mais tem o outro a menos. Grandes sustos nos pregava o Daniel, com o seu cigarrinho encaixado entre os dedos indicador e médio da mão esquerda, no braço em que possuía alguma mobilidade, pelo menos para levar o cigarro à boca. O seu grande problema, para ele e para nós é que não tinha qualquer sensibilidade nos membros e por mais que uma vez ele se esqueceu do cigarro aceso na mão e a deixou queimar, só nos apercebíamos quando começava a cheirar a carne queimada. Uma noite quase que puxava fogo ao lar, ficou bastante queimado e nunca mais voltou a ser o mesmo, morreu pouco depois. Era, no entanto, um tipo alegre, levantava-se quase todos os dias, especialmente no verão, e adorava o seu grande SLB. Não perdia um jogo na televisão e nas raras saídas ao exterior o destino era sempre o estádio da Luz.
O meu actual e único colega de infortúnio, o Lúcio, é um indivíduo rude, calado, nunca aceitou o que lhe aconteceu e isso fez dele uma sombra do que foi. Diz quem o conheceu, “na outra vida”, que era um poço de força e de generosidade, tinha mulher e filhos. Com o acidente perdeu tudo. A cama é o seu mundo, é um ávido consumidor de lixo televisivo e trata com desdém a Maria, que muita paciência tem com ele.
A Maria chegou e, depois de dar a beber água ao Lúcio, que lho tinha ordenado assim que a viu entrar no quarto, veio tratar de mim. Também não sou um caso fácil mas, pelo menos, nas relações humanas, considero-me menos misantropo que o meu colega de quarto.
Hoje é um dia especial, vou ao médico.
Esta simples alteração na rotina diária, que para o comum dos mortais até poderá provocar algum transtorno, só é comparável às saídas em passeio que o lar organiza de quando em quando. Graças a elas já visitei o Oceanário, o Centro Colombo e parte do Jardim Zoológico. Apenas parte porque nesse dia, a bateria da cadeira resolveu entregar a alma ao criador, mesmo em frente à jaula dos macacos. Pareceu-me até que os sacaninhas se ficaram a rir de mim. Nas outras duas saídas fui “diplomaticamente” convidado a não ir porque havia barreiras arquitectónicas.
É no refeitório que se ganha consciência da dimensão desta enorme casa. São três grandes filas de mesas, ladeadas de cadeiras por ambos os lados e que, muito antes das refeições começarem a ser servidas, já estão quase completamente ocupadas. A média etária destes meus “colegas” na grande casa deve ser, com garantia, superior aos 75 anos. Sim é um lar de idosos.
Após me dar a refeição, a Maria coloca-me em frente ao televisor para ir ela própria almoçar.
As idas ao médico têm este pequeno problema, não posso ir na cadeira eléctrica. O elevador do edifício onde se situa a clínica é muito pequeno para uma cadeira de rodas eléctrica, consequência, dia de médico é dia de saída mas é também dia de dependência total. Sim, porque se me atrevesse a pedir para passar para a minha querida cadeira eléctrica, depois de vir do médico, teria que passar pela cama e o mais certo era não voltar a colocar o rabinho na cadeira. Prefiro manter-me o resto do dia na estúpida cadeira manual, e pedir a um funcionário que a empurre sempre que precise de me deslocar, ou à Maria, se estiver por perto. Não, aos velhos não peço nada.
A viagem para a clínica é feita na velha carripana do lar, um furgão Citroen de chapa ondulada, da 2ª Guerra Mundial! Como não dá para ir na cadeira, tenho que passar para um dos estofos, o da frente que tem mais espaço. É uma aventura digna do Houdini, tentar enfiar um tipo com quase dois metros de altura, sim porque ainda cresci mais depois de ficar neste triste estado, e uns 90 Kg de peso, naquele espaço exíguo. Na tarefa participam dois funcionários, que depois receberam instruções para nos acompanhar à clínica, mais o motorista, tudo sob os comandos da Maria. Incrível, entrei.
Connosco vão também dois velhos que vão ficar no Hospital de S. José. A viagem será um pouco maior que o inicialmente previsto. Devido a esta alteração teremos que atravessar a cidade de uma ponta à outra. Aproveito então para, ávidamente, gravar mentalmente os sítios por onde passamos. Desde a última saída, a tal em que a bateria deu o “berro”, já se passaram quatro meses. Este período de tempo, embora não seja muito longo, é já suficiente para provocar uma estranha sensação de ausência. Os sítios, as casas e mesmo as pessoas, são uma novidade para mim, estas últimas parecem-me todas muito novas.
Chegados à clínica, repete-se o espectáculo, agora um pouco mais fácil porque como é para sair é só puxar. Temos, no entanto, uma audiência bastante interessada, que se vai aglomerando enquanto a operação decorre, trocando até comentários entre si, mas sem que alguém se ofereça para ajudar. Este povo português! Fizeram-me recordar uns certos macacos, mas sou eu que estou fechado à muito tempo!
A consulta médica decorre com a normalidade possível. A zona de pressão nas isquiáticas está feia e pode abrir, deve-se, pois claro, a passar muitas horas na cadeira.
Terei obrigatoriamente que reduzir esse período e fazer mesmo alguns dias só de cama até que sare completamente - merda - vou fazer companhia ao Lúcio. A infecção urinária é crónica, pouco há a fazer, - “Olhe, beba muita água”, “bebe-a tu”, pensei eu. Voltei com meia-dúzia de receitas debaixo do braço. O diagnóstico era já conhecido à partida, não me posso queixar de surpresas.
A viagem de regresso ao “buraco” é feita sem qualquer encanto, apanhamos hora de ponta e apanho também um dos funcionários a fazer olhinhos à Maria, e o pior…, o pior é que esta parece corresponder.
A MINHA Maria.
Não pode ser.
Nunca mais volto a sair.
O Lúcio é que tem razão.
Autor: Hélder Mestre

 

























publicado por bitu às 21:22
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De Anónimo a 15 de Setembro de 2005 às 04:24
Hoje viajei com este texto e o melhor de tudo é que durante a leitura eu só pensava mesmo era em você e no fato de que em breve estarás a pisar em minha terrinha. Adorei saber e já estou aguardando o que pedi no e-mail...viu minha mana? Bate um fio, tá?
Beijão enorme e ...tô no aguardo.
Donna
(http://cantinhodedonna.zip.net)
(mailto:cantinhodedonna@uol.com.br)


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